sábado, 10 de dezembro de 2011

Os rémoras

...Sujeitos incómodos, dizia o homem, sujeitos tão outros do que afirmam, tão à procura de alcançarem o contrário do que proclamam. Egoístas e superficiais, falam do seu profundo espontâneo amor ao próximo. Rasteiros e sem rasgo, cantam de si próprios elevados ideais. Incapazes e argutos, segredam, modestos, as realizações fecundas das suas actividades. Videirinhos sem perdão, ferozes, videirinhos, afirmam o seu desinteresse pelo dinheiro, pelas posições e honra, a sua largueza de sentimentos, o seu inato pendor para a camaradagem. E assim singram pelos caminhos mais fáceis, assim alcançam os melhores sítios, os mais amenos e proveitosos sítios. E de todos se servem, com astúcia, blandiciosos, falas mansas, palmadinhas nas costas.
Há-os por toda a parte, em todas as profissões, artes e ofícios, dizia o homem - são os rémoras.
E o homem, que tinha nascido à beira do mar, falou-nos do rémora. O agarrador, o pegador, como lhe chamam os pescadores, disse-nos o homem. E também lhe chamam o peixe-piolho. Malpronto de corpo, de cor acastanhada, sombria, saracoteante, grotesco e impotente de movimentos, incapaz de nadar para qualquer parte, vive em completa dependência dos outros peixes, a que se agarra com a ventosa que tem no lugar da cabeça. Só deste modo, levado pelos outros, consegue chegar onde abundam os pequenos peixes de que se alimenta, ou os restos das vítimas dos grandes peixes.
Classificam-no os entendidos como exemplo acabado de "comensalismo". Um malacopterígio, ensina o dicionário. E também lá diz, no dicionário: obstáculos, entraves, empecilhos, trambolhos, comodistas, exploradores - os rémoras.

Manuel da Fonseca, O vagabundo na cidade

Sem comentários: