"Houve tempos, não muito distantes, em que fazia parte dos hábitos das famílias deixar os filhos brincar um bocadinho na rua, depois das aulas.
Nesse tempo, a rua, nas pequenas aldeias e vilas, mas também nas cidades, era um espaço público de passeio e encontro, aberto a toda a gente, incluindo miúdos. Perto das casas onde as pessoas moravam, em todos os bairros, havia jardins, parques, pracetas ou descampados onde as crianças gastavam energias e socialiazavam sem saber que o faziam. Aí, esfolavam-se os joelhos em quedas aparatosas das bicicletas ou das correrias de faz de conta que sou índio ou cobói; jogava-se à bola ou ao "mata"; desenhavam-se "macacas" no chão e carreiros para fazer evoluir, aos piparotes precisos, caricas forradas a casca de laranja e pratas de chocolate. Às vezes, partiam-se cabeças com pedras mal dirigidas e, todos os dias, esperava-se por aquele tempo antes do cair da noite de distância dos adultos e ordem de soltura.
Era um tempo de recreio para as crianças, mas também para as mães, as avós ou quem tomava conta dos mais pequenos, já que, libertos deles, arranjavam tempo para si mesmas, para os afazeres domésticos, para as conversas com amigas. A rua era uma cúmplice segura de todos, que estimulava ganhos de autonomia, novos amigos e conhecidos, interacções libertas das regras de boa educação que tinham de se seguir sem desvios nos outros espaços em que se habitava: a casa e a escola.
Quando a rua desapareceu como espaço de convívio, porque as construções invadiram os espaços antes vazios e os carros inundaram de tráfego as ruas calmas, não se inventou nada de equivalente. Foram surgindo entreténs diferentes: mais horas de escola, mais tempo de televisão, jogos de salão primeiro e de computadores depois. Limitou-se o espaço em que as crianças podiam crescer e limitou-se a própria qualidade do crescimento. Foi um instante até se achar que, além de não poderem brincar na rua, não se podiam deslocar sozinhas na rua, que a rua era um lugar perigoso e ameaçador, vedado a quem não era crescido.
Há transformações que são perdas enormes e há faltas de espaço que, além de claustrofóbicas, são gravosas para o processo de maturação e crescimento. E parece que nem se dá por isso."
texto de Isabel Leal, publicado na revista Caras de dia 10/01/2009
Ao ler este texto recordo-me da minha infância e de como era tão bom brincar na rua, são recordações que trazem alguma nostálgia....
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